sábado, 11 de março de 2017

FLORIANO MARTINS | Joseph Cornell e a metafísica do efêmero


Joseph Cornell é o grande mago da colagem tridimensional. Cartógrafo do imaginário, ele transpôs constelações fantásticas para o lombo impensável do cotidiano. Louçarias, aramados, gradis, recortes esmiuçados de cenas as mais vulgares, todas essas formas imprevisíveis foram intimadas a fazer parte do enredo de suas caixas. Seu olhar guardava em si uma perene valise do mistério. Como conciliar todas aquelas sombras em torno de um novo oratório de sensações? O desafio era proposto pelo artista. A ele não cabia solução e sim ampliar o raio de ação da inquietude. Em uma de suas mais notáveis viagens por uma insólita dimensão do poético dedicou uma belíssima caixa a Emily Dickinson. Ao acolher um verso dela, Cornell o leva a viajar para um lugar tão distante de sua origem que o redimensiona por completo, dando-lhe nova vida talvez apenas intimamente pressentida.
Cornell era um minucioso colecionador de imagens. Autodidata, desde cedo manifestou curiosidade em relação à astronomia e à cartografia, bem como à história do papel na Ásia e à publicação de inúmeras revistas populares. A partir daí criou singulares truques de montagem que viriam a influenciar enormemente as artes no século XX. A conquista da tridimensionalidade era um modo de tornar reais os atributos da imaginação, do sonho, da memória, criando uma infinidade de vislumbres narrativos. Sua inquietude criativa o levou a experimentar uma vastidão de técnicas de colagem e justaposição, projeção e animação, rompendo com toda forma de linearidade na concepção artística, ao ponto de tornar-se um marco algo intransponível frente a tantos artistas que o sucederam. Livrar-se da sombra implacável de Joseph Cornell era um desafio evidente no mundo das artes, tanto quanto o fora, no ambiente poético, o caso de Fernando Pessoa.

Em minhas conversas com a artista Leila Ferraz sobre Joseph Cornell ela me faz a seguinte observação:

Querido: Cornell nunca se declarou surrealista. Surpreendeu nossos amigos que ultrapassaram os limites do convencional. Isso sim. Influenciou todo aquele que buscou um novo olhar para criar um mundo íntimo. De memórias poéticas e mágicas. Delicadas. Surpreendentes e incrivelmente lúdicas. Minha roupagem de funcionamento simbólico poderia ter sido construída numa pequena caixa de música. Eu pude escolher e dar-lhe minhas formas e dimensões. Se eu fosse a Alice Liddell – a pequena Alice de Lewis Carroll – ou uma das outras ninfetas que ele retratou, teria como meu mundo secreto cada obra de Cornell. Seu intimismo poético e revelador. Eu abriria suas caixas e escutaria seus segredos. Estaria dentro desse espaço conformado, pronta para abrir mais um misterioso segredo. Ninguém soube se esconder nas fímbrias de suas caixas e objetos.

Leila está certa em muitos aspectos. Comecemos pelo Surrealismo. É fato que Joseph Cornell jamais formalizou uma adesão ao movimento. Assim como a outras correntes da vanguarda. É curioso atentar para o fato de que ele considerava relevante a influência do romance-colagem de Max Ernst em sua obra, porém excetuando por umas colagens iniciais ele manteve boa distância estética de Ernst, configurando uma voz própria que se poderia chamar de tutelar, tamanha a sua influência nos horizontes das artes no século XX. Marcel Duchamp disse de Alexander Calder que sua arte era “a sublimação de uma árvore no vento”. De Cornell se poderia dizer que sua arte era a aventura fabular de um catálogo visionário.
Atenção crítica sensível ao universo criativo de Joseph Cornell deixa claro que não poderia haver de sua parte qualquer adesão, estética e/ou existencial, a situação alguma, em especial considerando que dedicara sua vida a uma obsessão lúdica, mais do que apenas a uma viagem onírica. Foi uma espécie de bruxo tocado pela totalidade. Cornell manteve boa relação com Jack Tworkov, um dos fundadores da Escola de Nova York, artista ligado ao ambiente da pintura gestual, a exemplo de Jackson Pollock, Willem De Kooning e Franz Kline. Deste movimento participara o compositor John Cage, cuja declaração de vida bem se aplicaria também a Cornell: “Renúncia à competição. Iluminação do mundo. Não uma vitória, só algo natural.”
Em 1991 Mark Stokes editou um documentário intitulado Joseph Cornell: worlds in a box, onde vemos o artista transpondo para o interior de suas caixas de sombras a própria alma da cidade de Nova York, mesclada a outros mundos imaginários. Este documentário, enriquecido pelo depoimento de nomes como Susan Sontag, James Rosenquist, Stan Brakhage e Rudy Burckhardt – estes dois últimos seus colaboradores em alguns filmes –, propicia uma viagem inestimável pelo ambiente íntimo de criação e convivência de Cornell, sua casa, arquivos, prateleiras, amigos, o modo como organizava a complexidade de seu universo criativo. Apesar da singularíssima dedicação ao impulso obsessivo de criar mundos, Cornell tinha uma espécie de concisão gestual, ao caminhar, mexer em seus guardados, absorver a existência a seu redor. A inquietude, da mesma ordem de uma vazante ou de uma tempestade, habitava unicamente seu olhar, sentido em que a beleza ganhava sua ordem mais convulsiva.
Joseph Cornell foi um precursor de praticamente todas as expressões artísticas mais relevantes no século XX, em seu ambiente plástico. Esta frase não está demais, se pensarmos no papel que desempenharam, na música e na literatura, nomes como Frank Zappa e Fernando Pessoa. Façamos aqui um recorte em sua apropriação de truques da fotografia, do teatro e do cinema. Cornell era tanto um criador de imagens como um manipulador de efeitos. Caixas, colagens, filmes experimentais. Sua intimidade com a mesa de edição era tamanha que o movimento lhe era algo natural, a animação cenográfica, o recorte preciso, a ponto de por em funcionamento as chaves secretas do roteiro e da trilha sonora. Recordem: não o fizeram igual Zappa a partir da música experimental e Pessoa de uma poesia não menos experimental? E acaso não foram os três casos complexos de abrangência de sua volúpia criativa de modo a não haver como enquadrá-los em uma estética restrita?
Voltemos ao Surrealismo. Ou melhor, a propósito de Surrealismo, voltemos à assertiva de Leila Ferraz ao mencionar o “intimismo poético e revelador” da obra de Cornell. Aos olhos de André Breton, no que pese o período que passou nos Estados Unidos, seu conhecimento da existência de Cornell – recordemos que ambos estavam ligados a Charles Henri Ford e à revista surrealista View –, a revolução do objeto na criação artística estava diretamente ligada ao desvio que se impunha de funções, ou seja, sua requalificação conceitual. Como o acaso deveria ser determinante neste desvio, Breton aceitava o ready made de Duchamp, porém não a manipulação do acaso de Cornell, que ele certamente tinha na condição de um construtivismo. Mas o próprio Salvador Dalí recordou que os objetos de Duchamp eram eleitos ou compostos. Mais uma curiosidade a respeito? A defesa de Breton em relação ao poema-objeto, ao qual ele se referia a uma característica de “especulação sobre seu poder de exaltação recíproca”. Ora, o que faltou a Cornell para integrar aquele rol mágico de artistas não-surrealistas a quem o Surrealismo costumava aderir incondicionalmente?
Volto uma vez mais à Leila Ferraz, quando menciona um de seus objetos de funcionamento simbólico, recordando o carinho que sempre teve pelo mistério que soube muito bem ocultar e revelar em suas caixas Joseph Cornell. Diz ela (recordemos) que “ninguém soube se esconder nas fímbrias de suas caixas e objetos”. Ora, Dalí evocava uma condição para a atuação de tais objetos, de que se baseassem em “fantasmas e representações suscetíveis de ser provocados pela realização de atos inconscientes”. Diz ele ainda que tais objetos “não dão nenhuma oportunidade às preocupações formais”. Talvez venha daí a não percepção de Breton em relação ao trabalho de Cornell, e se insisto neste tema é porque vejo uma relação íntima entre os laços vitais que levaram à criação tanto Breton quanto Cornell.
Bom, Salvador Dalí disse certa vez, em seus exageros peculiares, que a obra de Cornell é a única verdadeiramente surrealista encontrada na América. O que talvez não tenha havido termo de acomodação diz respeito aos sobressaltos ou dissensões em relação a outros modos de ser surrealista que foram percebidos fora da Europa. No caso específico de Joseph Cornell, como deixar de fora de um ambiente surrealista suas caixas de memória, seu teatro poético, a obsessiva construção de seus dossiês, e até mesmo sua reclusão e rejeição ao mercado? Para aqueles que são viciados em registros, quando a realidade precisa provar sua existência, anotem: Joseph Cornell esteve presente nas duas mais importantes exposições surrealistas dos anos 1930 nos Estados Unidos, da galeria Julien Levy e a famosa Fantastic Art, Dada and Surrealism, respectivamente em 1932 e 1936. Buscando certo equilíbrio de equívocos, menciono que Cornell suspeitava da aproximação do Surrealismo de uma magia negra. Ao comentar a este respeito com Zuca Sardan, ele então me lembrou que o próprio Cornell é um artista totêmico-mágico, suas obras têm uma grande força de vodu, destacando que esta rejeição seria assim um curioso auto velamento de sua própria pessoa, essencialmente mágica.
A sua vida se espelhava na imagem do que ele próprio havia definido em relação à criação: uma metafísica do efêmero. Joseph Cornell nasceu em 1903 em Nova York. Filho de classe média, três irmãos, as duas meninas cresceram e casaram e cedo se foram de casa. O pai morreu antes disto, Cornell tinha apenas 14 anos. O irmão mais novo, Robert, nasceu com paralisia cerebral. O desarranjo doméstico foi naturalmente agravado, porém esse relicário de privações não foi justamente o fator decisivo para a decisão de Cornell por uma formação autodidata. Esforços familiares o levaram a cursar uma escola que acabou abandonando. Chamou, no entanto, para si uma responsabilidade velada, a de cuidar de seu irmão mais novo.
A infância de Cornell é uma metáfora de sua estética. Uma dessas chaves mágicas a encontramos nas sessões de escape de Houdini de suas caixas trancadas. Duas outras diziam respeito a suas visitas a Times Square e Coney Island, além do convívio com as noites de vaudeville em Manhattan. Não importava em que encargos domésticos estivesse envolvido, sua paixão era o caminhar pelas ruas, a entrada em portas que eram portais que eram a chave de mundos novos que ia anotando de memória como casas às quais deveria retornar para definir sua percepção estética do ambiente. Cornell sempre foi um devorador de mundos. Um engolidor de mistérios. Uma ave renascida a cada ameaça de sua extinção.
Joseph Cornell foi um entranhável habitante da própria obra. É possível tanto encontrá-lo em distintas perspectivas e enquadramentos de inúmeras caixas quanto encontrar-se com elas na mecânica essencial de sua existência. Quase impossível – o que o torna ainda mais inestimável – separar vida e obra em se tratando deste artista. Seu estúdio se confundia com uma de suas caixas, e em suas fotos o próprio Cornell sempre parece estar no cenário de uma fantasia já de todo encaixada nas vértebras da realidade. Criador e criatura, multifacetados dentro e fora do mundo que revelou.
Joseph Cornell soube como poucos, somar fortuna e desastres de sua existência em nome da afirmação de que a arte não alcançará jamais outra dimensão humana além de si mesma. Este foi o desafio maior a que se impôs Cornell. A arte não é o que somos. Não é nossa adesão a uma instância estética. Não é o desvario em torno de um mundo que não reconhecemos como nosso. A arte – se cabe ainda usar o termo – é o modo como enfrentamos a vida. Simples assim: o modo como enfrentamos a vida. Uma vez mais? O modo como enfrentamos a vida.
A vida de Joseph Cornell esteve sempre marcada por uma admirável capacidade de situar a beleza nos escaninhos mais imprevisíveis. Mas não estava ao dispor do acaso tão completamente como se possa imaginar. Como ele próprio deixou registrado em seus diários, há um momento em que a luz do sol atravessa o meio dia. A viagem possuía uma concepção ulterior em Cornell. Sua vida inteira a viveu em poucos bairros em Nova York. Os passeios frequentes por Manhattan definiam, sobretudo, a fixação pela caça de objetos. Em meio a recortes de vislumbre e raras experiências táteis, soube absorver um ideário histórico e geográfico de causar espanto em alguns casos. Certa vez conversou largamente com Duchamp sobre Paris, vindo a declarar ao final do encontro que jamais havia estado na capital francesa. Cornell dizia que há objetos ou mesmo aspectos de nossa vida que são encontrados em lugares distintos, e que, uma vez encontrados, podem definir o que conhecemos como obra de arte. Aplicou técnicas de colagem a filmes que eram essencialmente pioneiras.
A vida é, ao final, um objeto que nos escapa. A obra de Joseph Cornell é um reflexo estimulante que nos leva a pensar em muitos modos de fuga da existência. A arte seria uma caixa de recursos a fugir da vida? E se fosse exatamente o contrário? Uma afirmação de que nossa existência ulterior se encontra repleta de fragmentos que não conseguimos identificar e colar, como um quebra-cabeça que mescle névoas de toda ordem de sentidos. Cornell compreendeu isto como poucos. A ponto de tornar a própria vida suspeita de não encontrar jamais uma razão de ser.




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FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor, dirige a Agulha Revista de Cultura e ARC Edições. Página ilustrada com obras de Joseph Cornell (Estados Unidos), artista convidado desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 25 | Março de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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