segunda-feira, 29 de maio de 2017

ZUCA SARDAN & FLORIANO MARTINS | Balaio de Guliver


O estrondoso e escaldante sucesso do livro O Iluminismo é uma Baleia (Fortaleza: ARC Edições, 2016), trilogia teatral de Zuca Sardan e Floriano Martins, tomou o curso fluvial de todas as mídias, incluindo as redes sociais e os satélites de lata. Achamos por bem que os leitores de Agulha Revista de Cultura desfrutariam uma conversa entre os dois autores e como a sorte não cai em conversa mole eles próprios nos presentearam com o capítulo inaugural de um novo livro que ambos estão preparando, cujo título nos foi revelado com um indisfarçável pedido de sigilo: Trombone Tropical. Ao adentrar nosso estúdio virtual Zuca & Floriano já estavam apontando os lápis enquanto tagarelavam sobre qual o título do encontro. “Já que vamos escrever um livro sobre os grandes vultos de uma história imaginária, nada melhor do que começar com a Baleia da Relatividade”. Muito exponencial o entrecho metafísico, que se registrava sozinho: “O problema da escolha de um título deve ser o momento propício para jogar nossos dados”. O acaso espirra daqui, a realidade estrebucha de lá. “BALEIA de DIDEROT… Ou BALAIO do SOBRINHO de DIDEROT… Ou ainda NARVAL do FILHO DE GEPETO…” Um ouvinte telefona sugerindo A vida nada secreta do Capitão Ahab. A realidade se envaidece ao ser tratada desse modo: “Assim acabaremos por criar a revolucionária entrevista-realidade-realmente instantânea”. Na Rádio Zíngara soava o refrão: “bring to me, lambretinha do capeta,/ bring to me, o melhor pastel de feira do além”. Olhos à obra, pois!

ZC | Floriano, se você clicar no Google "iluminismo e baleia" ou vice-versa, aparece nosso livro e uma série de outras coisas sobre o iluminismo e baleia. Numa dessas variações, aparece “Moby Dick e o Iluminismo”, e a seguir Kant que também fala no iluminismo e na baleia, o Bonifácio de Andrada, e vários outros filósofos, falando do Iluminismo e da Baleia… Ztamos famosos!… O-Ro-Ro-Roooooooooooooooo… Você poderia colocar assim como quem não quer nada vários desses itens numa página da Agulha sobre o livro, como comentários à obra. Aproveitar a deixa será o máximo do Surrealismo!…

FM | Mais interessante é que nosso livro é o primeiro da lista. Que coisa mais curiosa. Somos agora uma nova referência, seja para Iluminismo, seja para Baleia. Agora temos que inserir Einstein e o Grilo Parlante em nossos diálogos. O Dalí Salvador que nos perca de vista, porém o Surrealismo somos nós. Alguém duvida? Nós temos muitas parecenças na vida. Uma parte de afinidades cósmicas. Outras tantas justamente daquela liga que une os contrários. Não tanto pela diferença de idade, pois não temos mesmo idade alguma. Mas queria saber em detalhes algumas coisas tuas. A música, por exemplo, desde a infância, que música te atrai mais, o que escutas, enfim. Falemos dela, da música em nossas vidas.

ZS | Música é um mundo interminável, e em constante mutação, é como o mar que é sempre diferente e o mesmo todos os dias. Música, Gráfica e Magia são as três origens da criação do Homem e da Civilização.

FM | Mas algo do mundo da música teve interferência valiosa em tua criação? Um canto, um gênero, uma notação, uma voz, uma obra, algo?

ZS | Muita coisa, sacra e profana, de Lamartine Babo a Mozart, de Vicente Celestino a Sebastian Bach, de Paganini ao Condor Pasa… – a música é de todas as artes a mais entranhada na vida e no destino pessoal de cada vivente, do pardal ao Pavarotti, da Maria Callas ao rouxinol. A música teve interferência na minha poesia: o ritmo e a sonoridade o som e a entonação. A criança começa a pensar pelo som que ela entoa… A música chega antes da palavra.
Espanta-me a extensão assombrosa de tua bibliografia. Você supera a Cyclopédia Labrosse!… Sem contar que teus ensaios e entrevistas além de variadíssimos, com centenas e centenas dos mais contrastantes artistas, são sempre ilustrados por centenas de outros artistas. Trata-se, pra mim, de um fenômeno assombroso e inexplicável.

FM | O mundo é valentemente feito de espantos, Zuca. Eu também me espanto com o que tenho produzido, e tenho até receio que possa parecer a saga de um mero intrometido. No entanto, são desdobramentos, em mim, de uma intensa naturalidade, retrato fiel de minha própria natureza errante. O palco seguinte, em minha curiosidade, seria referente à gráfica, afinal onde realizas uma substanciosa alquimia entre verbo e traço. Por andam tuas reminiscências quando pensa no ambiente gráfico de tua criação?

ZS | Comecei a desenhar aos quatro anos de idade, e segui desenhando a vida toda… Talvez representasse na minha infância uma espécie de alquimia, que me dava um poder secreto, face ao mundo autoritário dos adultos. Percebo, hoje, uma analogia entre os desenhos do menino que escondia seus cadernos, e a arte rupestre, secreta, de nossos antepassados, executada em fundos inacessíveis das cavernas. E hoje, já de barbas brancas, continuo com este mesmo sentimento de haver um poder mágico no desenho. Isto, pra ti, certamente soa familiar, pois tens também, em tua gráfica, uma forte dose de manifestação de forças do inconsciente.

FM | Há certamente um poder mágico na criação, essa ideia valiosa de por as coisas de pé, de gerar uma mecânica até então inesperada. Isto sempre me encantou: como lidar com os elementos constitutivos de cada criação, suas partículas originais: letras, símbolos, cores, notas, fazendo esse mundo aparentemente desconexo convergir para um novo significado. A minha infância foi habitada por estímulos bem variados: livros, música, o rádio, fotonovelas, comics, a chegada da televisão, o cinema, naturezas mortas, tudo isto atuava em conjunto e me desafiava a tirar dali algo que me identificasse como cúmplice de tanta magia. E vejo o destaque que dás justamente à música, à gráfica e à magia. Porém as letras, seja a narrativa, a lírica, o teatro, como a imagem gráfica foi aos poucos abrindo espaço para o verbo?

ZS | A literatura sublime, apresentada nas antologias escolares, tal a clássica De Laet, era a única a que eu tinha acesso, existindo em casa só as artes exclusivamente plásticas, meu pai sendo então conhecido arquiteto, e que pegou a pintura como se pegava um touro pelos chifres Um seu associado no escritório de arquitetura, Kaolino, era pintor paisagista de fins de semana em Correias, perto de Petrópolis, onde a empresa tinha um loteamento, ele convidou o Saldanha a que também pintasse. Eis que o Pido (meu pai), s'embalou, e passou de golfista de chácara a pintor paisagista, e logo foi se dedicando mais e mais (durante a década dos 40s) à pintura; e descobriu com seu amigo arquiteto-pintor Ernani de Freitas, o Cubismo!… Que era o máximo da audácia na pintura modernista daquele tempo, onde ainda imperava o Academismo, com seus grandes astros. A arte modernista estava relegada a uma salita do cantinho… do Salão anual, realizado no edifício das Belas Artes, no Rio de Janeiro, o-ro-rô… Enfim, pr’encurtar a estória, meu desenho de bonecos-em-quadrinhos nada tinha a ver com meus desenhos-sérios, que eu aprontava pra entrar no Museu de Arte Moderna, onde (felizmente, hoje me dou conta), fui quase sistematicamente relegado. Fracassando também no desenho de projetos na Faculdade de Arquitetura (conforme já te contei em outra de nossas conversas), cheguei a um ponto em que, pra me salvar, descobri… ao ler Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, por incentivo de minha querida professora de francês, Louise Jacquier… descobri meu destino e bradei: “Sou Poeta!!!”… No que até hoje sigo acreditando… O-Ro-Ro… Mal se compara tal processo de formação literária com o teu, mergulhado nos mares da biblioteca colossal de teu pai.

FM | São apenas duas formas de uma salutar intransigência. A biblioteca de meu pai foi valiosa, porém ela sozinha não teria funcionado, não fosse aquele espantoso mundo de novidades que aqui mesmo já mencionei. Mas a biblioteca em si tinha o seu charme, porque ela era a expressão de uma gula intelectual. Só depois eu percebi o quanto meu pai tinha uma fome de conhecimento e o quanto que ela era desordenada. Para minha alegria, ali havia de tudo e pude ir tocando uma manada de cabeças as mais variadas. Era como se de repente alguém me pusesse à mão todos os instrumentos de uma sinfônica. A adolescência trouxe ainda mais diversidade, incluindo o teatro, a plástica, a música. O poema propriamente dito foi o último vagão desse trem de maravilhas. Ainda hoje desconfio um pouco da existência de certa predestinação, porque resultou que ao passar por todo aquele caudal de opções acabei me definindo por ele, o poema. A escola não me atraía para nada, de modo que não fui moldado pela Antologia Nacional que mencionas. Eu tinha predileção pela narrativa e também pelas invenções. Na infância eram frequentes em casa também as diversas opções de enciclopédias, Delta-Larousse, Barsa, Caldas Aulete, Conhecer etc. O mundo ia assim me habitando por incontáveis janelas. E nesse desenfreio de aprendizado eu fui desenhando meu próprio método, o que naturalmente entrava em contraste com os modelos acadêmicos. Além disto, havia a sedução da época, onde a vida nos cobrava toda sorte de experiência. A rua era mesmo uma grande escola. A minha adolescência se deu quase duas décadas após a tua, de modo que participamos de mundos bem distintos na idade de ouro da formação.

ZS | Um dos esportes mais sofisticados, nos 40-50s no Rio: pegar ou sair de bonde andando. O bonde era uma estrutura oca de extraordinária beleza, com dois estribos paralelos, que iam de ponta a ponta do veículo, verdadeira gaiola aberta, de que os longos estribos davam acesso aos passageiros, que pra subir se apoiavam num balaústre e entravam num dos bancos de ripas de madeira que iam do lado de entrada dos estribos até o outro lado, terminando por uma gradinha que corria ao longo de todo o lado esquerdo. O mestre da arte tinha de entrar ou sair com o mínimo de gestos, e sempre de costas à direção do veículo. Na saída em salto de costas, em alta velocidade, o mestre da arte, ao tocar no chão, corria pra trás. Naqueles tempos, anteriores à televisão, as filas de cinema eram intermináveis, davam a volta do quarteirão. E todos os filmes eram americanos, porque a guerra acabara com a produção europeia. A única exceção ao monopólio ianque era o Cantinflas, um cômico mexicano, com a grande especialidade de falar sem parar engavetando umas frases nas outras. E suas obras primas foram paródias de clássicos, de que a de maior sucesso foi Romeu e Julieta, diálogo em versos. O primeiro europeu que surgiu foi o Totó, de que os filmes, quanto mais improvisados pela falta de recursos, mais geniais se tornavam. Ao longo dos 50s começa a aparecer a tevê, as novelas. Mas, já no finzinho dos 30s, com a vinda de Le Corbusier no Zepelim, a convite de Lúcio Costa, pra dirigir a preparação do projeto do Ministério da Educação, teve início a nossa Arquitetura Moderna, havendo então surgido Oscar Niemeyer. Na poesia, afora os grandes mestres ainda ligados à Semana de 22, Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Cabral, durante os 30-50s não se falava em mais nada, salvo o Frederico Schmidt e a Geração de 45. Enfim, por volta de 1952, o Jornal do Brasil lança o suplemento dominical Caderno-B, que sacudiu o marasmo poético, com apresentação dos grandes poetas europeus posteriores a Rimbaud e Verlaine… e… servindo de plataforma de lançamento do… Concretismo. Pouco depois se cingindo no Concretismo paulista dos irmãos Campos, e no… Neo-Concretismo carioca, sob a liderança do crítico Mario Pedrosa, com o Ferreira Gullar na poesia e na pintura o Volpi, a Lygia Clark e… outros a seguir. Também nos 50s surgiu a Bienal de São Paulo, que na mostra de 1952 trouxe vastíssima coleção de Picasso, e boa sequência de artistas importantes da época. Na política, o Getúlio Vargas, que, em virtude da Guerra, quando apoiou os Estados Unidos e seus aliados, prolongou sua permanência no Palácio do Catete, cedendo às pressões liberais democráticas logo após o desmoronamento do Eixo, passando o poder ao Marechal Dutra, seu antigo Ministro da Guerra, e, descansando no período de discreto afastamento, bebendo mate-chimarrão em São Bórgia, voltou e, com apoio maciço do Povão, ganhou as eleições do Brigadeiro Eduardo Gomes. Mas a seguir vem o Carlos Lacerda, que com seus candentes ataques na Televisão, empolgou a classe média e Getúlio, pressionado, se suicidou. A partir daí, meados dos 50s, começa um novo período, liberal-democrata com Juscelino e construção a jato de Brasília, e findará em 1964, com o golpe militar e… o nascimento de Floriano Martins. O resto, após os 70s e primeira metade dos 50s, de televisão ufanística, você já então maiorzito, saberá melhor do que eu, o que foi que aconteceu.

FM | Por pouco não roubei a cena da Dieta Militar. Recordo bem o espanto de meu pai ao ver na televisão o anúncio do fechamento do Congresso. Cresci em meio à plenitude da melhor safra do recém-nascido rock e a munição sagrada de suas guitarras e baterias, de certo modo, não deixou ecoar em mim os ruídos da política. Talvez pelo afã adolescente, as receitas fabulares de drogas e sexos, o milagre brasileiro não interferiu na cota que fazíamos entre amigos para bancar gasolina, cigarro e cuba libre em nossas peregrinações pelos bares onde se mesclavam artistas, intelectuais e fãs. O meu dirigível que regia as melhores doses de maravilhas era uma mescla de Frank Zappa, Led Zepellin e The Alman Brothers. Até que aos 18 anos a música me deu uma chacoalhada no íntimo, ao por na vitrola um presente de aniversário que me dera um primo: o disco A música livre de Hermeto Pascoal. São desses meteoros que se chocam conosco e nos fazem renascer, a exemplo das leituras de Macbeth e Crime e Castigo, ou dos inúmeros encontros que eu tive, levado por meu pai, nas manhãs de domingo, com os filmes da dupla O Gordo e o Magro (Laurel and Hardy)… Este disco do Hermeto foi uma experiência alquímica, a fusão de tradição e ruptura na música instrumental feita no Brasil. A partir daí passei a matutar que não tinha mais graça em separar esses dois elementos. Retomei então o convívio com muita coisa que ia deixando para trás, livros lidos, música que ouviam meus pais etc. E fui me encantando cada vez mais pelo teatro e as artes plásticas. Embora intuitivamente naquele momento, este disco influiu demasiado em mim, definiu toda uma estratégia estética, algo com um impacto só comparável, décadas depois, à leitura do livro Os testamentos traídos, do Milan Kundera, que fortaleceria em mim o ambiente estrutural de minha criação. De algum modo, eu e o país tomamos rumos bem distintos. A minha política foi florescendo mais empenhada em descobrir uma América Hispânica desprezada pelo intelectual brasileiro, ao mesmo tempo em que do ponto de vista estético eu jamais senti a menor atração por nosso ambiente lírico que me era contemporâneo. Descobri no idioma espanhol um modo de acesso a um vastíssimo mundo editorial que não vinha dar em terras do Uirapuru. Esta conquista deves também ter sentido, quando de tua residência fora do país.

ZC | Andei do Caribe a Zanzibar, da Ilha do Fogo ao Delta do Mekong, do Vesúvio ao Ararat, sempre às voltas com carimbos, vistos, ofícios, mapas… e sem possibilidades de me enturmar com  turma concreta, senão mantendo por cartas e telefone contato com os amigões mais teimosos, que insistiram em não me esquecer. Meu acesso se concentrou assim no mundo fantástico interior, que procurei enriquecer no convívio da filosofia antiga, da simbologia, mitologia, alquimia, magia, e o surrealismo, que me deram uma familiaridade fraterna com figuras históricas e míticas, além de outras de meus mitos pessoais que se foram desenvolvendo, e aos quais sentia ter acesso, e com eles e elas sigo em contatos que se cristalizam em meus escritos e desenhos.

FM | Os livros sempre foram a razão de minhas viagens. Primeiramente ao mergulhar em suas páginas, logo saltando delas para a entranhável estação dos carimbos, quando a América Hispânica se abre como uma flor de lótus e de uma tacada só revelam-se dois segredos: o de uma poesia inesperada e de minha natureza errante. Nos dois casos, uma fonte perene de vitalidade. Viajei por praticamente todos os países do continente. Os encontros se multiplicaram na forma de leituras de poemas, conferências, edições de revistas e livros, organização de antologias… Inscrevem-se aí parcerias que já ultrapassam a marca de três décadas e permanecem intensamente ativas. Um dia uma inesperada varinha de condão me tornou curador de uma edição da Bienal Internacional do Livro em Fracaleza Drinks e pude então trazer essa América inteira para um evento múltiplo que despertou, dentre outras coisas, a falta de generosidade da comunidade intelectual local. Prova de que o mundo nem sempre é imprevisível. Mas eis aqui outra de nossas adoráveis afinidades, o interesse por “simbologia, mitologia, alquimia, magia e surrealismo”. Dá-me então enorme curiosidade de te ouvir falar da quase total ausência deste último item em terras alemãs.

ZS | Voltamos aqui ao drama do Iluminismo e da Baleia… Hitler, embora um ignorantaço, tinha sobrenatural poder hipnótico e mesmerizou a população inteira da Alemanha, que se lançou louca a seus pés, as mulheres de loiras tranças  de Valquírias, e os jovens de calças curtas e camisas marrom, todos embasbacados pelo grandioso senso mítico-teatral  que os nazistas souberam criar, com marchas de archotes, bandeiras que eram verdadeiras mandalas com a cruz suástica, grandiosos cerimoniais heroico-patrióticos, com Hitler no papel de Sumo Sacerdote. Justamente, a mente racional-iluminista, que havia expulsado do consciente a noção de mito e magia, como ignaras superstições, estava completamente indefesa  face ao enfeitiçamento coletivo  em escala nacional. O Iluminismo procura explicar o domínio de Hitler pela simples força bruta da Tirania Fascista. O Fascismo militarista antidemocrático teria, à força, escravizado toda a população. Ninguém assume que  o Povo alemão abraçou o Nazismo porque… estava hipnotizado. Do mesmo modo foram os comunistas hipnotizados por Stalin e, atualmente, todo o povo norte-coreano está totalmente hipnotizado pelo seu ditador. Aliás, talvez te lembres, um filme em que trabalhava o Sinatra, e que o plot girava justamente em torno da hipnotização, pelos técnicos norte-coreanos, de um político norte-americano candidato à Presidência da República. Lembras-te deste filme?…

FM | Ah este filme… The Manchurian Candidate (1962), do John Frankenheimer. Em 2004 teve um remake assinado por Jonathan Demme. As duas versões brasileiras levavam o título Sob o domínio do mal, da tradução do romance homônimo de Richard Condon que o inspirou. É sobre a técnica milenar da lavagem cerebral, que os governos de exceção costumavam utilizar antes da invenção da televisão, hoje mecanismo amplamente absorvido pelas indústrias da comunicação. A lavagem cerebral, embora ainda recurso utilizado na formação militar, tornou-se um trunfo imenso nas mãos do grande mercado. Mesmo considerando que Max Ernst era alemão de nascimento, me parece que o Expressionismo foi o mais próximo que a Alemanha chegou do Surrealismo. Mas o maquiavelismo nada sutil que impôs aos valores humanos uma hibernação em fundo falso da história, graças ao sagaz desempenho do Ministro da Propaganda de Hitler, teria sido mesmo a boa explicação para a inexistência de vida surrealista em território alemão? A Polônia teria absorvido na forma de arte todo o nonsense das duas guerras, sobretudo se pensarmos no cinema de Walerian Borowczyk e Wojciech Has. Bom, também em outros países europeus, os espólios da violência foram alquimicamente moldados em ouro estético (sobretudo no cinema e na poesia), seja através do Dadá ou do Surrealismo. No Brasil a lavagem cerebral parece ter operado mais em nome do clero. Pelo menos até o surgimento da Discoteca do Chacrinha, quando a televisão começa a aloprar em seus métodos de demência. Curiosamente, sempre tivemos aqui um ambiente demasiado propício ao Surrealismo, que só não se firmou porque é do caráter do brasileiro não firmar-se em prol de nada. Ou seja, entre nós não houve chance alguma seja para o Iluminismo, seja para a Baleia. Somos a mais pura balela, e nada mais.

ZS | O Gigante Pindorama pelo momento, dada a situação periclitante que ora atravessamos, finge que não sabe de nada, e prefere prolongar um pouco sua soneca… Em matéria de cetáceo somos modestões, ficamos com o Boto, que é pequenino, e boa gente… Só quer vestir seu terno branco, botar o chapéu panamá, e vir pro forró, onde sabe engambelar a cabocla distraída… Mas nenhum folclorista inda falou na Sereia Pirarucu, que tem lá seus avantajados encantos.

FM | Quando a exceção vira lugar-comum não há nada como convencer o Boto a vestir um abajur lilás e mergulhar nas águas da velha fonte do Alvorada Palace Hotel. Ardósia Buick distribuiu simpáticas latinhas das Farofas Mandacaru, enquanto Juca Retrancas passava o tempo afinando as cordas de seu alaúde, que ele jurava saber tocar. Todos sabiam que era só uma questão de semanas até o Pagode ser o modelo oficial de todos os truques palanquistas. As décadas foram se passando, até viramos um século, tudo como reinava no caderno Avante do velho Marechal Bacardi. Na adolescência li Gottfried Benn em espanhol, fundamental poeta alemão que ainda hoje não tem edição brasileira de sua poesia. Imensurável a lista de valiosos poetas que permanecem ausentes de nosso mercadão de livros. Mas quem liga? Quantos brasileiros mesmo até hoje leram Jorge de Lima ou Augusto Meyer? Por isto não te animes muito com os maracás luminosos do Google. Nossa Baleia iluminista talvez um dia desperte como uma peregrina sem nome. Enquanto isto, eu penso em tanto teatro automático que já escrevemos juntos e me veio a curiosidade: como imaginas esta nossa aventura dramatúrgica sendo levada ao palco?

ZS | Acho que você mesmo acabou de responder… “Não te animes muito”… Nosso Orixá Pindora segue na sua sesta multissecular deitado em beco esplêndido… O melhor é seguirmos fingindo que já somos famosos, e, com tua tarimba internética, darias umas furtivas ajeitadas nos diversos textos da página do Google “Baleia e Iluminismo”, em que encabeçamos em manchete todos os artigos subsequentes, onde se manifestam Dante, Pico della Pirandola, Gioconda, Bonifácio de Andrada, Capitão Ahab, Madame Curie, Champollion, Einstein, Jean Jacques Rousseau, Cleópatra, e todos eles, com tua manhosa revisão dos textos respectivos, seriam unânimes em confirmar o sucesso filosófico, político e dramático, na Sorbonne, Cambridge, Princeton, e nos mais famosos teatros do Oriente e do Ocidente, incluindo a Ópera Garnier e o Moulin Rouge, que nossa Baleia Automática recebeu, finalmente, mas sempre fora do Brasil, o sucesso merecido.

FM | Mas quem mesmo ia querer um Iluminismo que coubesse no estômago de qualquer baleia? Ou uma baleia que caísse na conversa de qualquer Lâmpada? O abade Lafão do Abacateiro tinha que ser mesmo um galgo do Porto, ao confundir nossa baleia com essa virulência azul disfarçada de ritual satânico que se espalha pela internet. Mas foi o único. Madame Curie profetizou que nosso Iluminismo atingiria o apogeu da moda e recuperaria o sentido extraviado do Barroco pelo Rococó. A nossa opulência seria um requinte de alma e não uma poluição de adornos. Bonifácio de Andrada queria proibir a pesca da baleia, segundo ele um abuso do progresso sobre a riqueza natural da espécie. Defendia que a baleia fosse concebida como o verdadeiro animal sagrado, aquele cuja imensidão atenderia a uma gradação infinita de propósitos, tanto políticos quanto econômicos, filosóficos e culturais. O grande crítico de cinema, Ron Alfarrábio, enrolou a língua e disparou que a baleia está para o Iluminismo assim como o próprio Iluminismo está para a baleia. E mais não disse, porque a língua travou. Jean Jacques Rousseau matreiramente evocou a luta de classes entre baleeiros e filósofos e, na forma de um alerta quase desesperado, destacou que o bom vassalo não berra. Veio de Ahab a nota mais coerente acerca do tema: segundo ele a Belle Époque só teve o estrondoso sucesso que conhecemos porque o Povão não estava preparado para entender o aprimorado receptáculo de mistérios que a nossa Baleia iluminista esteve para presentear ao mundo.

ZS | Pois é, só Capitão Ahab, com sua lucidez instintiva, sacou a importância de nossa Baleia, que não é a Baleia Azul, dos Parques de Diversão da Disneyland, nem os monstrengos poderosos, mas mentecaptos, dos   atuais quadrinhos Mangas de Tokyo. Trata-se, a nossa, de uma Baleia Metaphysica, própria para um público seleto de luminares. Justamente de tais qualidades superiores vem a dificuldade de sua aceitação pela massa que não desgruda das obras diluidoras das novelas de televisão. O Tempo tem pernas tortas e a Arte… é muito difícil. Melhor talvez continuarmos com nossos furos de reportagens e entrevistas com personagens vivos ou mortos, de modo a oferecer a nossas charmosas leitoras e engajados professores novas trilhas que nos conduzam pelos secretos caminhos dos mistérios e transcendências, tal a Loba Carcanella, que levou Dante às portas do Inferno.

FM | E as luzes da ribaltinha Pipoca-Lixo espocaram uma vez mais ao entrar em cena o Padre Ateu com suas peculiares memórias. Trazido pelas manhas da filósofa Ester Fridman, o padre Jean Meslier, é o nosso entrevistado do mês. A própria Carcanella lhe faz a primeira pergunta: – Padre Feio, de que nos serve a verdade quando não a podemos evocar? Meslier nem pisca e contesta: – Serve para lapidar os falsos mistérios até que eles explodam de tanta benevolência. Serve para carpir os fardos do alto clero até que seus representantes tropecem em seus erros mais comuns. E feio, antes que eu me esqueça, é o fruto do vosso ventre. A filósofa não contém o riso trocista. – Trotskista? O mundo está repleto de trotskistas, é verdade, e a Religião é a Ciência do Povão. A Loba investia com seus dotes reformistas. E antes que Kant-Lá indagasse ao Padre Ateu o que é iluminismo, entram as macacas garbosas dourando a pílula dos anunciantes.

ZS | Terrrrrível explosão!!! Esfacelada, cai a cortina sobre o palco, mais uma vez destroçado, do Circo Cyclame.
 
FIM (ao final das contas)



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ZUCA SARDAN (1933), FLORIANO MARTINS (1957). Capítulo 1 do livro Trombone Tropical, verdadeira saga de traquinagens metafísicas ainda em curso. Página ilustrada com três imagens mesclando fotografia e desenho, feitas a quatro mãos pelos dois artistas.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 28 | Junho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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