quarta-feira, 20 de setembro de 2017

RODRIGO CHENTA | Uma conversa com Hermeto Pascoal


RC | Conte sobre quando iniciou na música em Alagoas, quando pegava a "8 baixos" de seu pai escondido...

HP | Foi aí que eu descobri que nasci para a música. Comecei fazendo uma flautinha com o cano da mamona, os ferrinhos do meu avô, fazer som com a água da Lagoa da Canoa, depois peguei o 8 baixos do meu pai e daí passei para a sanfona, o piano, a flauta e não parei mais.

RC | Olmir Stocker (Alemão) dizia que a guitarra era apenas uma extensão de seu corpo e que qualquer instrumento o poderia ser. Sabe-se que a maioria das pessoas executa um ou no máximo dois instrumentos de maneira razoável. Como surgiu esta necessidade de se expressar com qualquer objeto que produza som?

HP | Surgiu da minha própria intuição! A música criativa é assim. A gente não premedita. Para mim é tão importante uma chaleira para determinado momento quanto o piano. Cada qual tem suas cores, sua natureza, seus timbres, suas funções. Ser multi-instrumentista não é ser um virtuoso em cada instrumento. É ter bom gosto para sair tocando, respeitando a natureza de cada instrumento.

RC | Vi em uma entrevista sua que certa vez, sua ex-esposa, Ilza da Silva, falou que teu professor foi Deus. Qual seria segundo seu conhecimento, a principal diferença do músico autodidata e aquele que estuda em escolas como Berkley College of Music, por exemplo?

HP | A diferença é que a pessoa que estuda na Berkley, ou em qualquer outra escola, tende a virar um técnico ou a ficar teórico demais. Na verdade, a pessoa que tem musicalidade vai sentir até que momento deve ficar na escola e quando deve seguir sua própria maneira de tocar. É o exemplo da Aline. Ela estudou canto, mas chegou numa altura em que ela resolveu parar de fazer cursos e se descobrir mais. Coincidentemente, através dessa busca pessoal, ela acabou me encontrando.

RC | Comente a seguinte frase: "é preferível errar arriscando a acertar sem arriscar".

HP | A liberdade é uma conquista. Não são todos que podem arriscar. Quem sente mesmo e é musical transforma o que seria um erro em criatividade, faz um glissando, uma apogiatura.

RC | A respeito de sua viagem aos EUA em 1969, para gravar com Airto Moreira e Flora Purim, onde teve a oportunidade de conhecer o famoso trompetista Miles Davis, ouvem-se muitas histórias, como quando vocês gravaram "Nem Um Talvez" e "Igrejinha" de sua autoria e foram publicadas como Miles sendo o autor delas na 1ª, 3ª e posteriores tiragens. O que realmente aconteceu?

HP | Aconteceu uma amizade muito grande entre o Miles e eu, e eu sempre achei que isso jamais teria sido feito por ele, mas sim, pela produção dele.

RC | E sobre a história da luta de Box "Hermeto Pascoal x Miles Davis". Fale mais sobre este episódio no mínimo muito engraçado.

HP | Estive na casa do Miles, sabia que ele gostava de box... havia um ringue e tudo na casa dele e, de repente, ele me deu as luvas para eu lutar com ele e levei a melhor. Ele quis acompanhar meu olho, mas um olho foi para um lado e o outro pro outro e eu acabei acertando ele no meio. Mas foi a minha mão que doeu.

RC | No famoso festival Jazzístico de Montreux em 1979, onde se apresentou em duo com Elis Regina. Segundo ela, em entrevista (www.youtube.com/watch?v=hRsk-WaZZxU), vocês nem sabiam que tocariam juntos, nada estava combinado e tudo surgiu naturalmente. É muito falado no meio musical, que um "provocava" o outro naquele momento. Fale sobre o assunto.

HP | Na verdade fui convidado para encerrar o Festival com meu grupo e a Elis abriu a noite com o seu. No final do meu show, pediram para nos despedirmos juntos e religaram os instrumentos para que fizéssemos um som. Então, saímos improvisando sobre as músicas que a Elis escolheu na hora (Garota de Ipanema, Corcovado e Asa Branca). Foi a única vez que tocamos juntos. Não houve provocação. O que houve foi muito som! Tanto que a Elis termina cantando: "Guarde contigo todo o meu coração".

RC | Em 1999, pela editora SENAC/SP, é lançado o livro Calendário do Som com uma composição para cada dia do ano (no caso 366). Pontos interessantes como a notação feita à mão, seus comentários e hora do término, entre outros, como os pássaros desenhados na partitura chamam a atenção. Como surgiu a ideia de lançá-lo em livro com o Instituto Itaú Cultural e posteriormente disponibilizá-lo gratuitamente em teu site?

HP | Foi uma intuição que me dizia para compor uma música por dia durante um ano. Não sabia que iria virar livro, nem calendário, mas tive que respeitá-la porque ela não me deixava em paz. Acabou virando uma grande homenagem a todas as pessoas porque cada uma tem a sua música, do dia do seu aniversário. Então, decidi disponibilizá-los no meu site gratuitamente para que todos tenham acesso a elas.

RC | Em 2008, Aline Morena redigiu o documento com o título de "Princípios da Música Universal criada por Hermeto Pascoal". A este formato musical é muito atribuído os termos liberdade e não premeditação. Qual seria a tua definição desse gênero executado por tantas pessoas?

HP | A Música Universal é a confraternização entre os povos através da música feita pela mistura sem preconceitos, mas com bom gosto harmônico, rítmico, melódico, tímbrico.

RC | Fale também sobre "O som da Aura", que é outra criação sua bastante interessante e comente este trecho de uma frase tua "A nossa fala é o nosso canto".

HP | Descobri isso quando era pequeno e via minha mãe conversando com suas amigas e dizia para ela que elas estavam cantando... A fala é o nosso cantar mais natural. Foi aí que desenvolvi o som da aura, primeiro com os locutores esportivos José Carlos Araújo e Osmar Santos. Percebo a melodia da fala, escrevo o tema que é essa melodia e depois faço o arranjo, que é a harmonização e o ritmo. Então, sou apenas o criador da ideia e o arranjador. A melodia pertence a quem falou.

RC | Uma característica sua é ser uma pessoa altamente intuitiva seja na improvisação ou composição como, por exemplo, em Berlim, quando escreveu em menos de dois dias, uma peça para ser executada com Orquestra Sinfônica. Conte como é o processo criativo de suas músicas e fale um pouco sobre a evolução musical.

HP | A música vem para mim de surpresa. Estou sempre preparado. Nunca faço questão de saber nada. Sou solto à minha intuição. Ela é quem manda. Posso estar em qualquer lugar, restaurante, avião, banheiro... A evolução musical não tem explicação, vem com o cotidiano, com o estudo, a partir da percepção de cada um.

RC | Muitas pessoas acreditam que as músicas compostas para o público infantil devem ser simples em relação à harmonia e ritmo. Existem aqueles que discordam de tal proposição. O que pensa sobre esta questão principalmente no contexto das crianças dos dias atuais?

HP | Eu digo que as crianças são mais preparadas do que muita gente porque não têm preconceitos ainda. E o gosto e a alma não têm idade! Nos meus shows sempre há crianças e elas sentem a música cada uma à sua maneira. Portanto, não é preciso diferenciar a música do adulto e de uma criança. Não estou falando em letra, mas em música!

RC | O livro O menino Sinhô – Vida e Música de Hermeto Pascoal para crianças, escrito por Edmiriam Módolo Villaça, e a faixa "Crianças (cuida de lá)" no álbum Brasil, Universo, refletem um pouco de sua relação com as crianças. Qual é em sua opinião, o maior benefício da música para as crianças?

HP | O mesmo que para um adulto: alimenta a sua alma se for boa e, se for ruim, polui.

RC | Sobre o livro agora pouco dito, ele saiu com muitas informações equivocadas em relação à linha do tempo de sua carreira. Como prova, são as correções (www.hermeto-pascoal.com.br/partituras.asp) apresentadas em teu website. Este ocorrido o incomoda de alguma forma, pois, sabemos que informação errada é um mal que provoca consequências muito desastrosas na construção do conhecimento?

HP | Quem não se incomoda? Nesse caso, eles prometeram corrigir para a próxima edição. Mas ainda bem que temos os sites agora, que tenho a Aline e que ainda estou por aqui para prestar os esclarecimentos... mas as pessoas devem sempre procurar as fontes certas, assim como você está fazendo, vindo direto a mim.

RC | A sua obra é estudada por músicos de diversas regiões do mundo. No Brasil a sua influência é muito forte, como por exemplo, no Conservatório de Tatuí entre outros. É fato que a música brasileira instrumental mudou (evoluiu) a sua cara depois de tua presença. Qual é o sentimento de participar de maneira tão vanguardista (mesmo que talvez inconscientemente) na história da música brasileira improvisada?

HP | Na minha opinião, a música não tem pátria, ela é como o vento, o ar, as estrelas, não é de nenhum país, ela voa...por isso chamo de Música Universal. Faço música a partir do Brasil, mas sou influenciado pelo mundo todo. Meu jeito sempre foi incentivar as pessoas a criarem, a buscar a sua própria maneira. Isso só me faz muito feliz! E a internet contribui muito para a divulgação de nossos trabalhos.

RC | Fale sobre o documento “Licenciamento”, onde liberou os direitos autorais de toda a discografia presente em teu portal. Muitos músicos encaram isso com certo receio. Comente um pouco.

HP | Tudo isso foi feito com o auxílio de advogados. Entre as editoras ficarem com o meu dinheiro e nem divulgarem suficientemente minha música, prefiro que as pessoas tenham mais acesso a ela e que os músicos possam gravá-las. Mas isso só foi possível graças à ajuda da Aline, que organizou os sites e aos advogados que me ajudaram a cancelar os meus contratos. Não fiquei sabendo de nenhum músico que ficou receoso com isso. E quem tiver qualquer dúvida ou precisar de uma autorização específica é só enviar um e-mail pelos sites www.hermetopascoal.com.br ou www.hermetopascoalealinemorena.com.br.







RC | Quase todos os teus álbuns possuem a voz como instrumento. A música "A capela" presente no CD Chimarrão com Rapadura, gravado em duo com Aline Morena apresenta harmonias e texturas muito sofisticadas. Algumas pessoas colocam a música em segundo plano em relação à letra. Fale sobre esta mistura de voz, instrumento, palavras improvisadas, sons vocálicos, grau de importância...

HP | Juntar tudo isso é maravilhoso, desde que seja com interesse musical e não comercial! Quando música e a letra se casam ou a voz com outros instrumentos, fazendo com bom gosto, fica lindo! Então, tudo é importante! Mas se a letra for boa, mas for mal cantada ou se a música for feia, não dá. Qualquer coisa ruim estraga a música, seja a letra, seja a interpretação, seja a harmonia, seja o ritmo. No caso do meu duo com a Aline, a voz veio muito a acrescentar e o Idioma Universal que faz parte de algumas músicas tem um sentido puramente musical, cada um imagina o que quiser a partir dessas letras.

RC | Em seu espetáculo, seja com o Grupo ou em duo, é muito comum que brinque com o público proporcionando uma grande interação com as pessoas cantando melodias com texto ou principalmente com sílabas e sons vocais destituídos de significação verbal. O tipo de público interfere de alguma forma na execução das músicas?

HP | Não, em qualquer lugar do mundo o público é afinado e participa muito dos shows porque a energia que se forma pela música contagia a todas!

RC | Diga algumas palavras para aqueles que almejam iniciar no mundo da improvisação e aqueles que pretendem compor?

HP | É preciso tocar bem seu instrumento, como se você estivesse dirigindo um carro sem precisar olhar para o câmbio ou para os pedais ou os botões. Aí, se você tiver nascido para compor ou improvisar, acabará fazendo-o naturalmente. Composição não se aprende na escola.

ACAMPAMENTO MUSICAL


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RODRIGO CHENTA (Brasil, 1980) Compositor, instrumentista, educador musical e analista. Agradecimentos por sua autorização para que reproduzíssemos aqui esta entrevista.

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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado | Farnese de Andrade (Brasil, 1926-1996)
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Jovino Santos Neto
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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