terça-feira, 3 de outubro de 2017

ELVIO FERNANDES GONÇALVES JUNIOR | Valdir Rocha, um olhar sobre o abismo


A exposição Reflexões Plásticas, de Valdir Rocha: uma enorme variedade de esculturas, pinturas e fotografias das mais variadas formas, cores e influências (todas, segundo o artista) é o que vemos ao entrar no salão – uma antologia de 50 anos de trabalho.
Ao longo da exposição, fica evidente a obsessão (ou fascinação se quiserem) do artista com a cabeça e com a face. É como se o autor explorasse, através de suas pinturas e esculturas, uma fisiognomia do grotesco, dado que a grande maioria das pinturas e esculturas expostas retrata rostos estranhíssimos, retorcidos, de expressão por vezes fantasmagórica e inquietante.
Não se trata, no caso da pintura, de retratos convencionais. Pelo menos num dos que identifiquei (a obra Os súditos, o rei, a rainha e o seu consolador, o bobo da corte e o candidato a santo) ocorre a superposição de pinturas por cima de uma fotografia de Marilyn Monroe. Procedimentos como este, a apropriação e transformação de obras e imagens, remete aos ready-made dos dadaístas e especialmente de Duchamp (L.H.O.O.Q. – a Mona Lisa com bigodes). Porém, o que acontece aqui é a plena superposição que termina por suprimir, tornar irreconhecível, a fonte original.
O procedimento de superposição, aplicado em diversas obras de Valdir Rocha acaba por conferir às mesmas os traços de ambiguidade necessários para que a exposição ganhe em sentido e contundência. Por exemplo, em sua, Lição de Anatomia, uma releitura de Rembrandt, um sem número de incisões de cor branca assola o quadro tornando este não só uma representação do título, mas uma verdadeira anatomia da pintura. Perfaz-se, assim, o jogo de espelhos, onde a obra de Valdir remete à de Rembrandt, enquanto a anatomia retratada é também uma estudo do próprio quadro enquanto processo – um quadro que é vários.
Há, nessas obras, uma espécie de mascaramento. De fato, Valdir Rocha, com suas Reflexões, parece jogar o tempo todo com uma poética das revelações e dos ocultamentos, mostrando e escondendo histórias e personagens (lembro-me do quadro Esconderijo, que mostra uma das famosas faces prestes a se ocultar por detrás de uma parede). O jogo real me parece, no entanto, o de um eu com seu outro, como se os retratos não fossem apenas a subversão das faces, mas a plena apresentação de um eu interior – o outro, a verdadeira face. Para verificar esse jogo dual, basta que nos detenhamos sobre os títulos de suas séries e a que elas remetem.
Por exemplo, em Éden, Hades, a dualidade do eu, sagrado e profano toma formas demoníacas e sombrias com prevalência das cores quentes; nas Histórias mal contadas, o “eu” se apresenta na narratividade das expressões e das formas escultóricas, mas essa narratividade é fragmentada posto que não costuma chegar ao fim e, quando chega, nos leva a perspectivas ambíguas; suas Notas sobre anatomia não apresentam um estudo do plano meramente físico, mas sim daquilo que é imanente ao ser; seus Espectros, fotografias, nos convidam à cumplicidade, para que vejamos não o que o autor captou na surpresa do momento, mas aquilo que nosso íntimo projetará.



Chego a essas reflexões pensando em algumas de suas obras que, ao meu ver, são mais expressivas.  Na primeira delas, a escultura Sísifo, há uma releitura do antigo mito do homem condenado a carregar eternamente uma pedra ao topo de uma montanha, de onde a pedra rolaria para condenar o penitente a uma nova subida. No entanto, aqui, a imagem é de um homem prostrado carregando outro. Dada a semelhança entre as duas personagens que compõem a escultura, diríamos se tratar do homem que carrega consigo, em seu âmago, a verdade de seu próprio ser, sua maldição. A queda esboçada no mito ganha, na obra de Valdir Rocha, outra profundidade. Se no mito ocorre a repetição do esforço físico até a exaustão, na escultura é outro o esforço despendido: o homem decaído deve carregar suas derrotas (lembramos aqui de uma outra escultura, com este nome), seus defeitos e suas maldições; se no mito a penitência ocorre na eternidade, a escultura nos atesta que devemos carregar e conviver conosco, aqui, agora, até o fim.
A segunda obra é também uma escultura, de nome Confessionário. Trata-se de uma cadeira construída com fragmentos e rebarbas de bronze retorcidas, em que a pátina dá uma singular tonalidade outonal, como se a cadeira fosse composta por folhas caídas, prevendo a fragilidade daquele que se sentaria para confessar os próprios pecados. O jogo aqui ocorre, portanto, entre deslocamentos de sentido e sobreposição de imagens: estilhaços de bronze que ganham o frágil aspecto de folhas secas, folhas secas que atestam a queda do eu já exausto de suas misérias.
A terceira é uma pintura em acrílico transparente, da série que Valdir chama de Jogo Duplo. Essa tela, na qual o pintor concluiu uma de suas cabeças com cores bastante opacas, dando à obra um quê de nebulosidade, gira suspensa por uma pequena fiação mostrando ora a frente, ora o verso. É, portanto uma obra dupla: vale tanto observar sua frente, onde o artista aplicou tinta e pincel, quanto seu verso (e aqui ocorre o surpreendente) onde as cores antes opacas ganham uma vivacidade extrema.
As Reflexões Plásticas, de Valdir Rocha, espalhadas pelo espaço expositivo, afirmam sua unidade através da multiplicidade. Embora presenciemos uma miríade de cores, formas, estilos e influências, a busca do artista parece ser uma só: a do eu profundo que há em nós, o eu profundo com o qual nos deparamos a indagar o um rosto de bronze retorcido ou de cores lancinantes que nos observa friamente. De fato, o artista não vem para explicar nada – complica e provoca.  É como se Valdir Rocha nos quisesse mostrar que somos mais vivos naquilo que ocultamos dos outros e de nós mesmos.

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ELVIO FERNANDES GONÇALVES JUNIOR (Brasil, 1992). Poeta e ensaísta. Autor de O coração em si (2017). Contato: elviofernandes.goncalves@gmail.com. Página ilustrada com obras de Valdir Rocha (Brasil, 1951), artista convidado desta edição de ARC.


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● ÍNDICE # 103

Editorial | Os horizontes não param de brotar

ESTER FRIDMAN | Como tornar-se uma obra de arte - a escultura de si mesmo

GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Algunas variaciones  sobre la metamorfosis de Franz Kafka

HAROLD ALVARADO TENORIO Piedra y Cielo 1936-1942

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | O teatro de Aimé Césaire: Une saison au Congo

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Pier-Paolo Pasolini et l’anthologie de Mario Pinto de Andrade sur la poésie nègre de langue portugaise

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Florbela Espanca e Ada Saffo Sapere: Alentejo e Reggio Calábria no feminino

OSCAR JAIRO GONZÁLEZ HERNÁNDEZ | En la muerte de Germán List Arzubide (1898-1998)

OSCAR JAIRO GONZÁLEZ HERNÁNDEZ | Meditaciones antimetafísicas

PIER PAOLO PASOLINI | La Résistance nègre

ROXANA RODRÍGUEZ | Rubén Sicilia y el Teatro del Silencio

ARTISTA CONVIDADO | VALDIR ROCHA | ELVIO FERNANDES GONÇALVES JUNIOR | Valdir Rocha, um olhar sobre o abismo

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Agulha Revista de Cultura
Número 103 | Outubro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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